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segunda-feira, maio 26, 2003

CLARICE

para Sanderson

Eram onze horas da noite e ele me mandou um email para desabafar sua frustração ao ler Clarice Lispector. Não que tivesse se decepcionado com ela; pelo contrário:a cada página lida, cada livro terminado, sentia mais fascínio por essa escritora. Mas é tão difícil entendê-la, me dizia.
Lembrei-me disso ao assistir, pelo canal STV, a um pequeno documentário sobre Clarice. Recordei, então, do que disse ao meu amigo para tentar animá-lo: Clarice é como uma dessas adolescentes que jamais passam desapercebidas, mas são inalcançáveis. Sua postura firme e seu olhar feroz hipnotizam, num primeiro instante, mas afugentam, num outro. Os garotos a vêem, a admiram, mas reconhecem não estar à altura. Têm medo de serem aceitos por seu profundo ser, até porque no labirinto da alma clariciana não há o fio de Ariadne para voltar, caso se desista do caminho.
Todavia, esse meu amigo a viu e apaixonou-se por ela. Ele não pensa em mais ninguém. Sua alma é profunda como a de Clarice, tem picos e abismos, separados por caminhos densos. Além disso, seu espírito é curioso e corajoso; mesmo sabendo que não há volta, ele está disposto a desvendá-la.

Clarice percebeu esse interesse. Por trás de suas expressões rígidas e um tanto amargas, ela deu um leve sorriso e sentiu um misto de descrença e esperança. Será que esse vai conseguir? Tomara que sim.
Começou, assim, a viagem desse meu amigo. Ele foi aos sebos de sua cidade procurar pelos livros dela. Já pôde sentir as primeiras dificuldades do desafio: encontrou apenas um livro. Ainda alvoroçado, visto o pouco espaço percorrido, não se desanimou. Depois de terminá-lo, encontrou outro. Depois outro. Até que houve um freio. Clarice quis testá-lo. Ele agüentou por duas semanas. Então, ela, discretamente, fez chegar às suas mãos dois livros seus infantis. Mais quilômetros explorados, confiança redobrada. Mas Clarice quis testá-lo novamente: deixou-lhe seu livro mais cansativo, mais desgastante. Meu amigo é forte. No entanto chegou a vacilar e foi então que me mandou o email.
Mas Clarice é sensível e, notando a persistência desse admirador, vai-se deixando conhecer, permitindo revelar segredos de seu âmago.

Agora quero falar com ele. Gostaria de saber como está, mas creio que ele não mais me escuta. Ele está longe, protegido pelas camadas claricianas. Tudo é Clarice e sua alma já se mesclou com a dela. E ele sabe que ainda está na metade do caminho.
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