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segunda-feira, agosto 04, 2003

Texto da semana para OS VIRAMUNDOS (www.osviramundos.hpg.ig.com.br)

(Continuação. Último capítulo!)

CAPÍTULO 4

Era hora da sesta, pois, lugares como o interior mineiro, distantes do progresso sufocante das grandes cidades, ainda se permitem esse salutar descanso.

Horácio acabara de almoçar e, como sempre o fazia, depois de comer, permanecia no seu atelier, lendo um livro.

Neste dia, lia Hamlet, mais particularmente o episódio em que o protagonista conversa com o fantasma do pai e pronuncia a Horácio – xará do nosso personagem! - :”Há mais coisa no céu e na terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia.”

Mas lembremos que, em direção ao atelier, vinha um vendedor ambulante...um vendedor de espelhos! E isso é motivo de apreensão, pois, vejam o “flash-back”: (vidente falando para a família de Horácio)

“- Escutem o que digo – sussurrou friamente a vidente – Afastem-no de todo espelho. Quanto mais opacos forem os objetos desta casa, mais anos viverá o seu filho.”

E desde então, Horácio jamais se vira num espelho...


- Boa tarde – disse o vendedor -, gostaria de dar uma olhada nos meus objetos?

- Pois não, o que o senhor tem aí?

- Espelhos com molduras de primeira. Temos molduras finas, grossas, douradas, de madeira, de azulejo, de cerâmica...

Ainda impressionado com as palavras de Hamlet, Horácio não prestou atenção na palavra “espelhos” e, por educação, pediu para ver os tais objetos.

O vendedor, colocando a mão numa sacola escura de lona, tateou alguns espelhos até encontrar o maior de todos.

Nosso personagem ainda se abaixou para juntar um pedaço de moldura que caíra da bolsa de lona, mas, ao se levantar e olhar para o espelho – e ver a sua imagem - , um vento forte passou pela cidade, brincando, qual moleque, com portas e janelas até chegar ao atelier.

Uma janela que se mantivera fechada, não resistiu à força do vento e, abrindo-se com tal força, acertou a cabeça do vendedor. Ele desfaleceu, deixando cair o espelho, que se espatifou.

Horácio abaixou-se para socorrer aquele homem, mas se viu detido pelos pedaços do espelho. Em cada estilhaço havia uma parte do seu rosto, curiosamente, de forma desordenada. Esquecendo o vendedor por alguns instantes, começou a juntar os fragmentos. Embora nunca tenha visto sua imagem, tinha uma leve noção de como era um rosto humano, pelos mosaicos que havia feito. Só que, como vocês devem lembrar, ele, nos seus trabalhos, não representava somente a face; cada detalhe, cada ruga ou expressão revelava um pouco da alma do modelo. Portanto, Horácio foi “montando” o seu rosto com cuidado artístico. Passou algumas horas, pacientemente, formando a sua imagem. Como um meticuloso artista de mosaico, sabia da cautela necessária para suas obras; o resultado poderia não ser uma obra-prima, mas teria que ser bem feito.

Ao terminar de juntar os estilhaços de vidro e formar a sua imagem, Horácio olhou ao redor e não mais viu o vendedor de espelhos.

O rapaz, então, deixou o espelho ao lado das demais obras e foi caminhando em direção à sua casa. Havia um vento suave na cidade, ao som da Ave-Maria das 6 horas da tarde. E a rotina aparentemente normal: homens trabalhando, mulheres rezando, crianças brincando....mas cada indivíduo tinha sua imagem fragmentada, como se fosse um mosaico ambulante; como se cada pedaço do seu rosto tivesse sido colocado, um ao lado do outro. Enquanto no atelier de Horácio, as cerâmicas adquiriram uma textura epidérmica, com tal vivacidade que pareciam conter as almas dos moradores daquela cidade do interior mineiro.
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