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sábado, outubro 02, 2004

MISERICÓRDIA
Desde a sua Primeira Comunhão ele não entrava em uma igreja. E como ele foi se lembrar da Primeira Comunhão? E que mistério da memória é esse que ao se lembrar de uma coisa, essa coisa traz milhões de outras lembranças, como se um cavalo puxasse mais de uma carroça ao mesmo tempo? Mas é assim que funciona e a lembrança da Primeira Comunhão trouxe a lembrança da sua mãe, a lembrança dos seus amigos (e como eles brincavam na rua...), a lembrança da sua cidadezinha. E ele não teve, como primeira reação, outra, a não ser a do espasmo de ver tudo aquilo dançando à sua frente, de ter um palco com várias lembranças se exibindo e trazendo mais lembranças. Ele também não se lembrava de quando fora a última vez em que se lembrara de tanta coisa ao mesmo tempo. Aliás, há quanto tempo não tinha tempo para as recordações? No fundo ele sabia...sabia exatamente quando passou a temer as recordações. Foi quando, numa época, fatos tristes se tornaram protagonistas em sua memória e ele pensou ter sido o culpado por isso; achou que, por descuido, apertara algum botão vermelho, provocando uma explosão de erros em sua vida. Toda explosão é lastimável e ele estava no meio da rosa. A fumaça desapareceu com o tempo, mas os destroços permaneceram. O palco, que agora exibia as recordações alegres, naquela época se mantivera intacto, mas ele, tão indignado, apagara as luzes, sem perceber que umas lembrancinhas doces estavam encolhidas atrás das cortinas.
Mas ali estava ele. Entrara naquela igreja por um motivo, o mais banal possível: uma das folhas que ele carregava saiu voando e foi parar no navio. Só isso. Ele jamais pensaria em “coincidência”, “destino”, “sorte”. Ele nem pensou em um motivo para aquilo. Talvez não houvesse mesmo. Mas aconteceu e ele tinha que buscar aquela folha, tamanha a sua importância.
Ele entrou e aqueles santos de cerâmica olharam para ele. Mas ele não reparou nisso. Caminhou em direção à folha, se abaixou para pegá-la e, ao se levantar, viu um garotinho ajoelhado, segurando um terço e recebendo a hóstia. Ao lado, estava a mãe do garoto e chegavam garotos da idade dele para cumprimentá-lo. O homem da nossa história sabia que não podia estar vendo aquilo. Ele sabia, mas então...como? Ele esfregou os olhos várias vezes, limpou os óculos e não viu mais o garoto. Só que a mãe ainda estava lá. Ela se levantou, andou em sua direção e o abraçou. Deu-lhe um abraço como há anos ele não recebia, disso ele se lembrou. E então ele resolveu ceder e a abraçou também e chorou, chorou, copiosamente. A igreja estava vazia; somente os santos testemunhavam aquela cena. O homem encostou a cabeça no ombro da mãe e acabou adormecendo. Um pouco distante dali, ele reapareceu no palco onde estavam as lembrancinhas doces. Foi para os bastidores, abriu as cortinas e acendeu as luzes. As boas recordações surgiam como dançarinas e dançavam harmoniosamente à sua frente. Ele ficou ali, em estado de graça, observando-as, até pegar no sono.
E não mais acordou.
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