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quinta-feira, julho 30, 2009

CONTINUAÇÃO DE A CAUSA DE JANE AUSTEN, de Lêdo Ivo:
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Procedendo sempre, como todos os ficcionistas legítimos, a uma interação do imaginário com o documental, a uma fusão da vida larga e acordada com o sonho particular que guarda os grandes segredos da vida, e temperando o seu sólido e sadio realismo com elementos cômicos ou burlescos, Jane Austen faz respirar, neste A Abadia de Northanger, uma das mais vívidas reflexões sobre a arte do romance e o papel do romancista, ao estabelecer o cotejo, nas peripécias de sua personagem principal, entre o universo do imaginário e a vida real. As vicissitudes vividas por Catherine Morland, sob o império de suas leituras do romance gótico, especialmente das horripilantes histórias de terror e mistério da Sra. Radcliffe (autora de Os Mistérios de Udolfo e O Italiano), testemunham, decerto, a força de contágio da ficção na vida real. Mas, se Jane Austen de um lado satiriza o romance negro – que voltou a reconquistar o seu lugar perdido, neste tempo dos assassinos, como diria Rimbaud, em que vivemos todos – do outro ela procede a um dos mais certeiros e comoventes elogios que um romancista já fez ao seu e nosso ofício. Denuncia os inimigos do romance, quase tão numerosos como os seus leitores. E, reconhecendo que “nenhuma espécie de composição tem sido tão escaenecida como a nossa”, celebra no romance “a mais completa ciência da natureza humana”.
Este malicioso e delicado A Abadia de Northanger haverá de convidar o leitor a reconhecer que ninguém perde seu tempo lendo romances. Antes o ganha, já que a arte de ver e narrar de Jane Austen, unindo a imaginação à memória, resgata a vida de seu próprio e inevitável olvido. O destempo mais uma vez volta a ser “Le vierge, le vivace et le bel aujourd’hui” festejado por Mallarmé. A vida guardada pela arte fiel que nega o esquecimento e a morte não está perdida. Ela será sempre reencontrada pelo leitor que, ouvindo um rumor de cabriolé, a música de um baile ou o vento contra uma janela, sabe mais uma vez que está lendo um romance, no dia infindável. E no silêncio dessa fidelidade ouvimos todos a voz de Jane Austen, como uma advertência e uma profissão de fé: “Não desertemos de nossa própria causa”. E esta é, também, a causa do leitor.
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